Histórias de Pescador

 A Vida "Boa" do Pescador

Antônio Lopes da Silva

Não há um só, pescador amador que já não tenha ouvido pelo menos uma frase do tipo: "Ó, vida boa, meu" ao chegar de uma pescaria.  Normalmente, quem diz a tal frase não é pescador e nos olha como verdadeiros "boas vidas", que vão à beira d´água, onde não há problema algum, só divertimento. 

A noite anterior à pescaria não havia sido muito calma, já que os problemas do trabalho nos haviam feito chegar muito tarde em casa.  E até arrumar a tralha, acabaram restando apenas duas ou três horas para tentarmos dormir um pouco.  O sono claro veio agitado, daqueles que quando se acorda, se é que se conseguiu realmente dormir, parece que foi só um pequeno cochilo.  

Mas o despertador, ditador e tirano, nunca perde a hora e acabou nos fazendo levantar com raiva dele, mas não do que iríamos fazer.  Um café requentado, já que não dava tempo para um novo, e nos pusemos a caminho da casa do companheiro de pescaria. 

Todo mundo a bordo e toda a tralha arrumada, faltava apenas por o pé na estrada, o que foi feito sem demora.  Na primeira cidade, uma padaria já aberta nos convidava para o tradicional "pingado e pão com manteiga", o que na maioria das vezes é reforçado por outra coisa qualquer, dependendo do apetite.

O resto da viagem até o pesqueiro é feito rapidamente, pois os quilômetros se encurtam, tamanha é a vontade de pescar.  Desta feita, a pescaria era de robalos, em um rio qualquer aqui no Estado de São Paulo.  

Já à beira d´água, descarregando a tralha toda e montando o barco com motor e os equipamentos de pesca, começamos a sentir as "boas vindas" dos seres alados.  Eram borrachudos, que ainda de madrugada nos atacavam deixando suas marcas traduzidas pelas pequenas bolinhas de sangue na pele e uma terrível coceira após a mordida.

Como tudo é euforia, ninguém deu muita atenção ao fato, apesar de uma ou outra reclamação.  Motor de popa funcionando e barco andando até a primeira galhada submersa, local onde o robalo gosta muito de ficar.  

Barco parado, sendo movimentado apenas de vez em quando pelo motor elétrico, os lances com nossas iscas artificiais iam sendo feitos com precisão junto à galhada, e vez por outra um robalo de bom tamanho atacava nossas iscas, sendo trabalhado e embarcado com cuidado. 

O sol já se fazia presente e o calor do dia começava a aumentar. 

Apesar de nossa roupa ser mais ou menos leve, estávamos vestidos a caráter para uma pescaria de robalos, ou seja, camisa de manga comprida e fechada no colarinho, calça jeans, meias de futebol grossas e envolver a perna da calça e boné na cabeça.  Assim vestidos. estávamos obedecendo a seguinte norma: quanto menos pele exposta, menos lugar para inseto morder. 

Inevitável que com o sol, o borrachudo acabou diminuindo um pouco a ferocidade de seu ataque e deu, talvez de bom grado, passagem para as mutucas.  Estas, por sua vez, faziam questão de nos morder em qualquer lugar do corpo, sendo que, se déssemos moleza, com certeza entrariam até dentro de nossas bocas. 

Só sentíamos alivio quando o barco saia em velocidade de um pesqueiro para outro.  Mas era só parar para que os terríveis insetos recomeçassem o ataque. 

Na hora do lanche, não houve tempo para descansar, pois as mutucas não nos largavam.  E assim foi até o anoitecer.  Quando a noite chegou, já que iríamos passa-la a beira d´água, as mutucas sumiram completamente. Após uma janta caprichada, à base de um bom churrasco, nos recolhemos para dormir.  Para que não tivéssemos nenhuma surpresa, levamos uma rede de dormir devidamente envolta por um filó, igual ao que as noivas usam na cabeça e os bebês nos berços.  

Um bom banho de rio para refrescar e rede para que te quero. 

A propósito: durante o jantar e o banho de rio, já estávamos devidamente acompanhados por pernilongos e mosquitos pólvora. 

Só de shorts, com todo o cuidado, entramos em nossa rede de dormir, antevendo uma boa noite de sono.  Fazia muito calor e foi exatamente nessa hora que descobirmos ser filó um "excelente" mosquiteiro ... contra pernilongos.  Na verdade, não era obstáculo nenhum para os terríveis mosquitos pólvora. 

Em determinado momento, e posso afirmar que qualquer um reagiria assim, a paciência se esgotou e nos vestimos novamente, com toda a roupa do dia, após o que passamos a andar, dando voltas no acampamento com um pequeno ramo de folhas nas mãos, nos fustigando, na tentativa de afugentar os insetos. 

E assim fomos passando a noite, com sono e sem poder dormir.  Já madrugada adentro, com calor, tiramos a roupa e nos jogamos no rio. 

Sentados em uma pedra e só com a cabeça fora d´água, pelo menos não passávamos calor e deixávamos boa parte do corpo livre das picadas.  No entanto, vez por outra éramos obrigados a passar a mão molhada no rosto, já que o pólvora não dava sossego nem mesmo dentro do rio. 

Os primeiros raios de sol começavam a aparecer e a vontade de pescar veio forte.  Vestidos novamente, demos a partida no motor de popa, tendo como companhia os borrachudos.  Acho ate que eram os mesmos da madrugada anterior.  Como todo mosquito educado, os pólvoras e pernilongos davam sua vez no banquete aos borrachudos.  Sol alto, e esses últimos deram seu lugar às mutucas.  

E lá fomos nós, pescando, sendo mordidos e espantando, quando víamos, os insetos que teimosamente insistiam em nos sugar. 

E assim foi o dia todo. À tarde, a única coisa que nos consolava eram alguns bons robalos dentro do viveiro do barco.  

Acabada a pescaria, só nos restava recolher a tralha ao carro e novamente por o pé na estrada.  Com que alegria, e em meio a cânticos e brincadeiras, abrimos as janelas do carro, que em velocidade, faziam o vento entrar, não dando vez a nenhuma raça de inseto para nos incomodar. 

Bastante cansados, empreendemos a viagem de volta, tomando o dobro de cuidado, já que o sono era agora insuportável.  Deixamos o companheiro em sua casa e fomos para a nossa. Quando chegamos, na garagem, começamos a descarregar tudo e arrumar em seus devidos lugares. 

O cansaço era tanto que o único pensamento era acabar logo com a tralha, entrar em um bom banho de chuveiro e fazer as pazes com nossa velha e conhecida cama de todas as noites.

Pois bem, foi aí que a coisa aconteceu, o danado do meu vizinho do lado, que, acredito eu, estava a me observar por um bom tempo e não veio nem oferecer ajuda para descarregar a tralha, veio em alto e bom som, com a velha frase: "foi pescar, né? Ô vida boa, hein, meu?"

Confesso que minha vontade naquela hora foi de mandar o vizinho e amigo para um lugar que certamente iria acabar com nossa amizade.

É evidente que não o fiz, mas dei um sorriso malicioso e pensei com meus botões: na próxima vez, eu levo esse desgraçado pra ele ver como é boa a vida do pescador. 

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